Slopificação da internet: você sabe o que é isso?

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Slop“. Você já viu essa palavra, por aí, na internet? Esse termo, já comum entre os zoomers, vem chamando atenção de todos, independente da geração, até porque ele representa algo que já faz parte do nosso cotidiano.

Sabe aqueles conteúdos bizarros, nonsense – basicamente, lixo virtual – que tem ganhado a internet, principalmente, as redes sociais. Sim, são eles. Mas com um diferencial: são conteúdos sintéticos, produzidos exclusivamente utilizando a inteligência artificial.

A princípio, esse conteúdo parece inofensivo, mas traz sérios problemas. Imagine você, precisando buscar uma informação simples na internet, e, nessa busca, se deparar com uma enxurrada de conteúdos irrelevantes, perturbadores ou bizarramente formatados para chamar a sua atenção.

Depois de alguns segundos, você já entrou em sites que não faziam parte da sua busca, se perdeu e até esqueceu o que estava procurando. E essa é a principal estratégia dos slops: te levar pela rede para lugares que parecem ter conteúdo, mas, quando você olha mais de perto, são uma mistura de coisas sem sentido algum.

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Essa “nova praga virtual” tem chamado atenção, porque, diferente de outros conteúdos estranhos e perturbadores, os slops geralmente não acrescentam muito. Pelo contrário, consomem a nossa atenção, muitas vezes a memória dos nossos gadgets (sabe aquela enxurrada de imagens que você recebe pelo Whatsapp e que muitas vezes vai parar na sua galeria de fotos) e o nosso tempo.

Esses conteúdos são feitos intencionalmente para confundir a nossa cabeça. Apesar de geralmente imitarem conteúdos criados por humanos, eles são carregados de estranhezas, às vezes escancaradas, às vezes sutis, e passam a ocupar o lugar de imagens fakes, que têm cara de fake, em situações normais seriam claramente classificadas como fakes, mas que muitas vezes passam, por terem muitas outras bizarrices ao seu redor e, por isso, conseguem enganar muita gente.

É o absurdo que deixa a gente desconfiado, mas que pode passar batido, porque vivemos tempos muito loucos. Então, vai que cola.

Quem aqui não se lembra do papa Francisco com jaqueta puffer. Absurdo, certo? Mas, poxa, ele é tão mais moderno que os anteriores que, no frio, poderia usar uma boa jaqueta para se esquentar, por que não? Tanto que muita gente acreditou. Além disso, essa imagem singela criou um tráfego surreal na rede, principalmente nos sites que a compartilharam.

Um outro exemplo, que claramente é uma imagem bizarra e que caracteriza muito bem o que é um slop é a imagem de Jesus Cristo com braços de camarão. Se você procurar por ele, vai achar várias versões.

E é isso mesmo! Outra característica dos slops é que eles se retroalimentam e criam versões de si, que se espalham em diferentes plataformas. Por isso, você pode ter visto um Jesus Cristo com braços de camarão, mas qual de suas versões?

Esse elemento aleatório e sem sentido, como os braços de camarões, pode até parecer engraçado, mas diferente de um bom meme, logo mais cairá no esquecimento, pois não tem valor.

As plataformas de redes sociais, que hoje se tornaram parassociais, acabam forçando seus usuários a estarem sempre ativos, postando. E aqui temos quatro pontos interessantes que contribuem para o surgimento da “cultura dos slops“.

O primeiro é que não importa muito se o conteúdo é de boa qualidade, mas, sim, se ele tem o “formato” correto e atende as prioridades dos algoritmos. É tipo fazer reels no Instagram, que hoje alcançam muito mais gente do que boas fotos. Isso, por si só, faz cada perfil ser inundado de coisas, e não interessa se outras milhares de pessoas compartilharam ou fizeram a mesma coisa.

O que importa é fazer, mesmo de qualquer jeito, e ter quantidade. Se você posta muito, consequentemente gera constância, e aí, meio caminho andado para o segundo ponto: ter muitos seguidores. E aqui, de novo, números, que quanto maior, melhor.

Por mais que hoje em dia o foco seja o engajamento, compartilhamento e outras referências, no fim, são os grandes números pra todos esses perâmetros. De novo, quantidade e não qualidade.

Isso nos leva ao terceiro ponto, que é o funcionamento da economia da internet, muito pautada nas quantidades que geram receita de publicidade. Como tudo é dinheiro e criação de valor, tudo aquilo que aumenta a classificação de perfis (e pensando em internet, dos sites), por gerar mais engajamento, compartilhamento e ter mais tempo em atenção, é o que conta.

Nesse sentido, o que chama a nossa atenção, mesmo que pela bizarrice, está criando mais valor na rede. Se algo desvia a nossa atenção do que interessa e a controla, esse algo também está gerando mais valor na rede. Se estamos falando de geração automática de grandes quantidades de imagens e outros formatos, que, muitas vezes, vêm como respostas às nossas buscas, certamente serão respostas para outras milhares de pessoas.

Essas entidades compartilháveis, do ponto de vista da economia da internet, são um trunfo, fazendo com que as pessoas acessem sites específicos, compartilhem, cliquem e aí o slop já cumpriu sua função.

Com isso, chegamos ao quarto ponto. Sabemos que o que ganha força nas redes sociais é o ódio e uma série de negatividades que tomam lugar do que é bom. Essas coisas sempre vão chamar mais atenção, ter mais importância na nossa vida e gerar mais engajamento e, por isso, é muito difícil de abandonar. Quando pensamos em redes sociais, esse tipo de conteúdo e discussão brilha e se replica.

Esses quatro pontos, que caracterizam o que hoje chamamos de plataformas de redes sociais (aqui, incluo os fóruns e apps mensageiros), direcionam tudo o que fazemos na internet. Afinal, usar a internet, estar conectado em rede, pra maioria das pessoas, é usar redes sociais.

Quando voltamos a analisar o conteúdo do que está circulando, grande parte poderia ser descartada que não geraria danos, muito pelo contrário. Já faz bastante tempo que a internet está inundada por conteúdos de baixa qualidade, ou que os servidores estão lotados de repetição de arquivos. Então, o que muda agora?

Claro que na era da inteligência artificial não poderíamos deixar de falar da IA. Com as ferramentas de geração de imagens, vídeos, texto, áudios, modelos tridimensionais e por aí vai, cada vez mais fáceis de usar e acessíveis, a gente já está vendo uma verdadeira invasão desses slops.

Apesar de serem substancialmente imagens, um monte de conteúdo de todos os tipos, gerados por IA, estão invadindo as redes e tomando lugar do que é produzido pelo homem.

Se o que nós, humanos, produzíamos, no geral, já não era de boa qualidade, isso faz com que, sutilmente, por mais bizarro que seja, o que é gerado por IA pareça ou incrível ou pelo menos razoável, já que nossa régua passou a ser baixa.

Seu feed, hoje, está cheio de lixo gerado artificialmente, muito provavelmente antes estava cheio de “slops humanos”. E a razão é a mesma: faz a gente se distrair do que é importante e perder tempo, que, mais que dinheiro, é vida. A grande diferença aqui é a produtividade, a otimização do processo.

Gerar conteúdo artificialmente é muito fácil e rápido. Todos os perfis e site que usarem IA estarão na frente, pois terão números mais expressivos. Todo esse conteúdo afetará severamente as contas de conteúdos sérios e relevantes, mas que precisam de muito mais tempo para produzir qualquer coisa.

Claro que parte dessas contas pode usar IA para ajudar no processo, e isso vai acontecer. A diferença é que a maioria vai ser automatizada, sem o controle humano e feito com um certo desleixo, meio qualquer coisa, muito diferente do que o uso humano e inteligente das IAs.

Essa “lama”, ou “borra”, gerada artificialmente vai ser indesejada, de baixa qualidade, e vai continuar chegando sem a nossa permissão, poluindo o ecossistema digital.

Por isso que muitos especialistas têm feito uma analogia interessante com os spams ou lixo eletrônico: você não quer, mas ele está sempre chegando e tomando espaço do que realmente importa. E o pior, fazendo a gente perder o nosso tempo com bobagens.

A ideia é que esse novo termo sirva para reforçar o impacto negativo dessas imagens, assim como de outros conteúdos produzidos por IA sem nenhum cuidado, e que têm o único objetivo de nos confundir e desviar nossa atenção.

Um dos principais defensores da adoção do termo, o desenvolvedor Simon Willison, defende que dar um nome pra esse tipo de conteúdo não revisado e gerado por IA, assim como aconteceu com o spam, ajuda a gente a destacar o prejuízo que eles trazem, além de nos ajudar a diferenciar toda a produção que nos alcança.

Pra quem não se lembra, antes do termo spam ser adotado, não era necessariamente claro para todos que mensagens de marketing indesejadas eram ruins, um comportamento online a ser bloqueado. E, da mesma forma como nem todo conteúdo promocional é spam, nem todo conteúdo gerado por IA é lixo ou slop. E, por isso, nessa nova era que entramos, é importante dar nome aos bois.

Outra vantagem de adotarmos um termo que “pegue” é que sua existência vira uma forma simples de se falar do assunto. As empresas de tecnologia estão treinando seus sistemas e plataformas para identificar conteúdo produzido por IA, além de rotular ou diferenciar esses conteúdos sintéticos daqueles produzidos por humanos. Mas isso não basta.

Nós humanos devemos, como sempre, exercitar nosso olhar crítico e sacar o que é e o que não é. Estamos caminhando para um futuro complexo, no qual a “gerar realidades” vai se tornar um padrão, ainda mais com o uso indiscriminado de IAs. Por isso, o movimento vai ser importante pra não cair em tudo que aparecer.

Todas as ferramentas geracionais são frequentemente usadas ​​para gerar conteúdos profundamente falsos, quase indistinguíveis da realidade. Os danos que isso pode causar são infinitos, além de gerar cada vez mais resíduos de IA que vão confundir a nossa realidade, replicada à exaustão.

Se ajudamos a repassar esse conteúdo, estamos contribuindo para uma cultura mais homogênea, alimentada por máquinas, que não têm bloqueio criativo como os seres humanos.

Isso me fez lembrar de uma teoria da conspiração que começou a rondar a internet por volta dos anos 2010, e que teve seu início no 4chan. Segundo “A Teoria da Internet Morta“, boa parte do tráfego, postagens e usuários da Internet já foram substituídos por bots e conteúdo gerado por IA, copiados e replicados, e as pessoas não moldam mais a direção da internet.

Esta teoria, apesar de ter sido uma reação aos algoritmos e aos mecanismos de busca otimizados da época, tem recuperado sua popularidade com a invasão dos slops. Pulando quase 15 anos, o que vemos é que essa teoria começa a se assemelhar à realidade.

Estamos sendo cada vez mais atingidos por essa avalanche de slops, tanto que já tem muita gente declarando, novamente, que a internet está morta mesmo.

Segundo Jason Koebler, do site de notícias de tecnologia 404 Media, e citado nessa matéria do jornal The Guardian, que colocou os holofotes no novo termo, essa nova tendência representa o que ele chama de “internet zumbi“.

Talvez mais interessante do que dizer internet morta, pensar em território zumbi traz a ideia de uma invasão desse lixo que transformou as redes sociais em um espaço onde “uma mistura de bots, humanos e contas que já foram humanos, mas não são mais, se misturam para formar um site desastroso, onde há pouca conexão social“.

Agora, saindo desse campo do imagético, vamos para um campo que pode realmente afetar a nossa realidade. Notícias geradas por IA podem trazer sérios problemas. Se as fake news geradas por humanos já fazem estragos, imaginem isso numa escala maior, e muito mais refinada.

Lembremos que bots ajudam bots, atraindo nossa atenção e amplificando tudo ainda mais. Vejam o exemplo do X, onde os posts são impulsionados pela vida dos bots, compartilhados pelos bots e comentados pelos bots, tornando as informações não confiáveis e tudo chato demais.

Toda essa desinformação que circula indiscriminadamente é usada em campanhas de propaganda organizadas para distorcer a opinião pública. Mais uma vez, a capacidade da IA ​​de gerar grandes quantidades de slops sob demanda é crucial para campanhas informativas ou desinformativas contemporâneas.

Como vimos, o funcionamento das plataformas e a economia da internet dependem de nós, ou de bots, para impulsionar tudo isso.

Sendo assim, poderíamos dizer que a propaganda do modelo generativo de IA tem dois objetivos principais no atual contexto. O primeiro seria persuadir a mudança da opinião das pessoas, fingindo que as histórias que vemos online vêm de pessoas reais. O segundo objetivo seria convencer que tudo é falso, pra tentar garantir que você não acredite em ninguém e não faça nada com o que vê.

No entanto, enquanto estou escrevendo este texto, ainda não há vocabulário para distinguir adequadamente o conteúdo gerado pela IA e a mídia produzida pelo homem. A “slopificação da internet” não dá conta de explicar os novos tempos, mas já é um bom começo.

No fim, continuamos chamando tudo de conteúdo, como se a diversidade do trabalho criativo e intelectual produzido pelas pessoas fosse equivalente a uma salada de palavras coesa gerada a partir de postagens roubadas do Reddit.

Por mais que estejamos em um momento em que nós, seres humanos, estamos produzindo muito lixo, tipo um “slop humano”, isso ainda pode desempenhar um papel na redução da quantidade de conteúdo gerado por IA. Por pior que seja, a gente gosta de gente, mesmo que não tragam nenhum valor particular.

Na produção de conteúdo de IA, o trabalho criativo das pessoas é dividido, automatizado, padronizado e minimizado da mesma forma que o “artesanato” pode ser automatizado na linha de produção industrial, se quisermos. Mas sempre haverá dados humanos que a máquina não terá mesmo. E, por isso, a IA tem que ser encarada como mais uma ferramenta.

Talvez, no futuro, uma das formas de diferenciar conteúdos feitos por pessoas daqueles feitos por IA seja um dado mais bruto e real de imperfeição ou de erro humano. As IAs ainda erram de maneira meio absurda, o que chamamos de alucinação. Mas com o avanço tecnológico essas falhas tendem a diminuir.

Ao contrário, nós humanos, precisamos do erro para evoluir. Precisamos das emoções para nos levarmos aos deliciosos absurdos da vida. Perfeição para nós é algo mais maquínico mesmo. Imagina lidar com pessoas perfeitas, que não erram. Mas as máquinas, elas, sim, são feitas para serem precisas, meticulosamente perfeitas e lógicas.

Por isso, fico imaginando que, no futuro, uma das formas para diferenciarmos os conteúdos feitos por humanos e máquinas será por meio dos erros e resultados ditos “menos profissionais” e “mais reais”.  Seremos amadores, incorretos, reais e erráticos, frente a uma avalanche incontrolavelmente rápida de conteúdos sintéticos. Essa rugosidade nas produções humanas vai ser um “selo de autenticidade”.

Talvez, no futuro, vamos valorizar o trabalho humano como hoje valorizamos o excepcional trabalho das máquinas.

Esses dias assisti ao filme “Guerra Civil“, com o incrível Wagner Moura e outros atores maravilhosos. Sem spoilers e qualquer análise do filme, uma das coisas que gostei foi a valorização do trabalho dos fotojornalistas e repórteres cinematográficos.

Quando me apaixonei por fotografia, grande foi a influência dos fotojornalistas como Robert Capa, David Seymour, Henri Cartier-Bresson entre outros, que testemunharam a história e criaram a famosa agência Magnum.

Esse tipo de trabalho não pode ser substituído por IA, e também não é o tipo de coisa que qualquer um com uma câmera faz.

O “slop”, ao contrário dos conteúdos mais tradicionais, é um desafio emergente que precisamos enfrentar juntos. Com o avanço da IA, também teremos melhores métodos de detecção e filtragem, reduzindo a prevalência e a relevância desses dados digitalmente inúteis.

Independente do avanço tecnológico, precisamos saber identificar melhor o que consumimos, e o futuro da internet também vai depender de como vamos transitar na rede.

Reforço o que já disse em outros textos aqui: precisamos de mais transparência e regulação quando se trata de IA, antes que navegar na internet seja algo tão confuso que a gente tenha que aceitar as respostas prontas, como propõe a AI Overviews.

[*] – Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/