Análise: PEC da Anistia e o avanço do retrocesso 

Política

A aprovação da proposta que anistia dívidas e punições impostas a partidos representa um avanço do retrocesso político e social promovido por deputados petistas, bolsonaristas e do centrão.

O texto perdoa dívidas bilionárias, anula condenações ordenadas pela Justiça Eleitoral, dificulta ainda mais as candidaturas de políticos pretos e pardos e aprofunda desigualdades regionais.

Em uma comparação simplista, se equiparado ao direito penal, o perdão patrocinado pelos deputados representaria a anulação de condenações de quem cometeu crimes e desviou bilhões de reais. Os crimes seriam perdoados, a ficha estaria limpa e o dinheiro desviado não precisaria ser devolvido aos cofres públicos.

Votaram para dar aval à proposta, entre outros deputados, o líder do governo José Guimarães (PT-CE), Gleisi Hoffmann (PT-PR), Marco Feliciano (PL-SP), Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Aécio Neves (PSDB-MG), Silas Câmara (Republicanos-AM) e Marcos Pereira (Republicanos-SP). A bola agora está com o Senado.

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O texto trocou a anistia irrestrita para as dívidas de partidos que não cumpriram as cotas raciais para determinar um pagamento retroativo e escalonado. A PEC prevê que os partidos deverão reinvestir, nas próximas quatro eleições, o dinheiro que deixou de ser pago para as candidaturas de pessoas pretas e pardas em eleições anteriores.

A proposta aprovada prevê a criação de um Refis para partidos, seus institutos ou fundações, para que regularizem seus débitos com isenção de juros e multas acumuladas, sendo aplicada apenas a correção monetária sobre os valores originais.

O pagamento deverá ser feito em até cinco anos para as obrigações previdenciárias e em até 15 anos para as demais, a critério do partido. Eles também poderão usar recursos do Fundo Partidário para parcelar multas eleitorais, outras sanções e débitos de natureza não eleitoral.

A PEC também reforça a imunidade tributária de partidos e cancela sanções aplicadas e processos em curso que desrespeitam esse princípio.

A aprovação da proposta com ampla maioria preocupa especialistas, procuradores eleitorais, ministros de tribunais superiores, entidades e associações.

A avaliação na cúpula do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é a de que a proposta prejudica o esforço da Corte para diminuir as desigualdades nas eleições. Interlocutores da presidente do TSE, ministra Cármen Lúcia, afirmam que, ainda que a anistia não seja “completa”, fica uma sensação de impunidade.

Em 2018, o TSE definiu que partidos políticos deveriam, já para as eleições daquele ano, reservar pelo menos 30% dos recursos do Fundo Eleitoral para financiar as campanhas de candidatas.

Naquele mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a destinação de pelo menos 30% dos recursos do Fundo Partidário às campanhas de candidatas.

O TSE decidiu em 2020 que a distribuição dos recursos do Fundo Partidário, do Fundo Eleitoral e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão deve ser proporcional ao total de candidatos negros que o partido apresentar para a disputa.

A versão anterior da proposta aprovada na quinta-feira (11) pelos deputados previa um mínimo de 20% de direcionamento dos recursos para candidaturas de pessoas pretas e pardas. Uma mudança no texto estabeleceu a fatia em 30%. A proposta foi aprovada assim.

O lado bom, de acordo com especialistas, é a previsão constitucional de transferência de recurso para candidatos negros. Antes havia apenas decisões judiciais que autorizavam essa transferência.

O lado ruim é que, por mais que pareça um aumento passar de no mínimo 20% para 30%, o texto engessa o valor que pode ser repassado e fixa um teto que não pode ser ultrapassado. Apesar da previsão expressa na Constituição, o texto limitaria o total a ser distribuído a pretos e pardos.

A frase que vem na sequência foi vista com preocupação por especialistas: “Nas circunscrições que melhor atendam aos interesses e estratégias partidárias”. Circunscrição é o espaço geográfico onde se trava determinada disputa: país, estado, município e distrito.

Nota técnica conjunta publicada pela Transparência Internacional – Brasil, Pacto pela Democracia e Movimento Transparência Partidária diz que, com isso, “há possibilidade de que os gastos se concentrem em determinadas regiões e sejam ausentes em outras, o que pode aprofundar as desigualdades regionais”.

“A PEC é um acinte, é um absurdo. É vergonhoso que estejam aprovando algo neste sentido. Na minha visão, pode comprometer ainda mais a pouca credibilidade da população e da sociedade brasileira nos partidos políticos e, no longo prazo, quiçá até a própria sobrevivência do regime democrático”, diz Marcelo Issa, diretor do Transparência Partidária.

A procuradora Regional Raquel Branquinho, que coordena o Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate à Violência Política de Gênero do Ministério Público Federal (MPF), afirma que as mudanças feitas antes da aprovação representam “uma pequena contenção no grande retrocesso que representa essa PEC”.

“São bilhões de reais que estão sob apuração administrativa, civil ou criminal e que serão simplesmente apagados, permitindo o enriquecimento sem causa de pessoas que se locupletaram de dinheiro destinado ao custeio da democracia representativa em nosso país”, afirma.

“Flexibilizar regras de controle, transparência e integridade e retirar os partidos políticos da obrigação de prestar contas de forma eficiente à sociedade representa uma gravíssima situação que fragiliza a democracia e também todas as ações destinadas à aplicação das políticas afirmativas de gênero e raça”, diz.

A advogada eleitoral Karina Kufa afirma que a cada eleição os partidos políticos buscam imunidade de sanções aplicadas em decorrência da má gestão e que o ideal seria determinar regras rigorosas e planos de gestão visando que as siglas cumpram as suas obrigações básicas. “Dar imunidade toda vez que a dívida fica alta gera apenas mais irresponsabilidade com o uso do dinheiro público”, afirma.

“Não me parece uma medida que vem acudir um interesse da sociedade. Muito pelo contrário. Me parece uma medida que vem galgada em interesses próprios no sentido de esvaziar a exigência legal que protege essas questões sociais. É um esvaziamento de todo trabalho que foi feito e um verdadeiro retrocesso para essas questões que precisam de olhar mais rígido e mais sério”, diz o advogado Bruno Cristaldi.

Não é a primeira vez e nem será a última que políticos aprovam propostas em benefício próprio. A CNN mostrou em maio que o limbo sobre regras que definem o que pode e o que não pode ser feito durante o período que antecede a campanha eleitoral não tem prazo para deixar de existir.

Naquela ocasião, o jurista Torquato Jardim, que foi ministro do TSE, lembrou que toda norma eleitoral é definida por uma maioria transitória de parlamentares que busca garantir a eleição de uns e impedir a eleição de outros. Os casos são diferentes, mas o objetivo é o mesmo.

“No Direito Eleitoral, o redator da norma é o seu próprio destinatário”, cunhou Torquato Jardim. A análise é de que a vontade do político está vinculada ao clamor social. Foi assim que as regras sobre doações eleitorais por pessoas jurídicas foram alteradas. “Mas a gritaria social é baixa”, destacou.

Se para o Congresso mudar as regras que norteiam a pré-campanha no Brasil é preciso haver mobilização, articulação e vontade dos parlamentares, o mesmo vale para o fim das irregularidades eleitorais e uma maior participação política de pretos e pardos.

Mas, assim como a ausência de regras claras beneficia justamente a classe política, o perdão das dívidas bilionárias, a anulação de condenações ordenadas pela Justiça Eleitoral e a imposição de obstáculos para que mais pretos e pardos representem a população privilegiam os políticos e os partidos que hoje estão no poder.

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[*] – Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/