Na série norte-americana How to get away with a murder (Como Defender Um Assassino, na versão brasileira), a advogada Annalise Keating é considerada uma das melhores do ramo pela habilidade em ganhar as causas mais improváveis. Assim como na profissão, sua resiliência na vida pessoal é notória pela forma que tenta lidar com os impactos dos crimes de gênero e racismo sofridos ao longo da trajetória, seja por meio do abuso sexual vivenciado na infância ou pelos ‘nãos’ recebidos antes de fazer sucesso na carreira.
Toda a força, coragem, dor, senso de justiça e a própria vivência da personagem se confundem com a história da advogada Fayda Belo, considerada a Annalise Keating brasileira. Natural de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, Fayda é advogada criminalista, especialista em Crimes de Gênero, Direito Antidiscriminatório e Feminicídios. Dos seus 42 anos de vida, os últimos três têm sido dedicados a falar de Direito na internet sem o ‘juridiquês’. Ela estourou nas redes sociais, onde acumula mais de dois milhões de seguidores, durante a pandemia, ao ver o vídeo de uma jovem que disse que sua mãe a deserdaria por ser lésbica. Daí, surgiu o bordão “pode não”, que usa para esclarecer o tipo de prática que pode e que não pode com base na legislação brasileira.
Com dez anos de carreira, Fayda também é escritora e publicou o livro “Justiça para Todas: o que toda mulher deve saber para garantir seus direitos”. Na próxima sexta-feira (7), às 17h, estará em Salvador para participar da II Conferência Estadual da Jovem Advocacia Baiana, que acontece de quarta (5) a sexta, no Centro de Convenções de Salvador, na Boca do Rio. No evento, vai falar sobre a necessidade do Direito ser popularizado para que seja acessível para todos e sirva de munição, sobretudo para as minorias sociais. Ao CORREIO, ela falou sobre sua trajetória, o público, os cuidados com seu conteúdo, a fama e, claro, a comparação com a personagem da TV.
Ano passado, você venceu o Best Sister in Law como melhor advogada do Brasil em Direito Antidiscriminatório e, este ano, o prêmio Sim a Igualdade Racial na categoria Influência e Representatividade Digital. A que atribui o seu sucesso?
Eu acho que o primeiro item é compreender que eu não sou mais e melhor do que ninguém. Isso é o que fez eu ter esse resultado, as pessoas olharem para mim e verem que, na verdade, não existe uma hierarquia, mas uma troca de igual para igual. Levar o Direito com uma linguagem simples, inclusiva, que as pessoas entendem, permite que as pessoas escutem e sintam o que eu realmente quero que elas entendam.
Seu conteúdo atinge gente de todas as idades, mas é inegável seu sucesso entre os jovens, uma vez que a rede social que você mais acumula seguidores é o Tik Tok. Qual o segredo para uma comunicação efetiva com eles?
Eu acho isso superengraçado, porque eu sou brava (risos). Eu sempre tive um mundo rodeado de jovens na minha relação. Mas, eu acho que é uma linguagem simples com um toquezinho de humor e o deboche, que a gente gosta (risos). Isso faz com que eles se aproximem mais e isso é muito bacana. Quando eu falo em ter um público jovem e que escuta o Direito, isso é muito relevante para o Brasil, porque o amanhã é deles. Então, eu fico muito honrada quando vejo que muitos jovens param, me escutam, replicam e aprendem.
Você é considerada a Annalise Keating brasileira e chegou a conhecer a atriz Viola Davis quando ela veio a Salvador. Como foi esse encontro? E como é ocupar o imaginário de jovens meninas negras que se inspiram em uma pessoa real?
Ouvir que eu sou a Annalise Keating do Brasil para mim sempre foi uma honra muito grande, porque Annalise Keating é Viola Davis e eu sou muito fã dela. Ano passado, eu tive a honra de vê-la, de conversar com ela e ainda de dar o meu livro para ela. E foi a mesma coisa quando as meninas pretas me enviam direct e e-mail. Foi olhar a Viola e dizer ‘eu posso’, da mesma forma que as meninas olham e dizem para mim: “você me traz esperança de que a gente pode e vai ocupar qualquer espaço”. Isso me põe em um lugar de muita emoção, porque mostra que tudo que eu faço não é sobre a Fayda, mas sobre todas nós.
Você volta a Salvador no mês que vem para participar da II Conferência Estadual da Jovem Advocacia Baiana. Qual a sua expectativa para o evento?
Eu estou muito animada. Primeiro, porque eu amo a Bahia, é minha outra casa. Quando alguém aí fala: “Fayda”, eu bloqueio a junta para ir, sempre. É um lugar que me recebe e me acolhe muito bem, e eu me sinto em casa. Estou muito animada porque nunca vou à Bahia para que eu ensine algo, eu sempre aprendo muito. A troca é boa e eu sempre volto mais forte. Espero que seja um evento incrível, porque vamos rodando o Brasil afora, explicando que o Direito não é de alguns e precisa ser de todo mundo.
As pessoas que te seguem são chamadas carinhosamente de ‘crimelovers’. Não é de hoje que existe um interesse em crimes, mas nos últimos anos vemos uma crescente de produções voltadas para casos criminais. Você mesma, em alguns vídeos, cita alguns deles. Qual o cuidado que você tem para que seu conteúdo não seja uma mera exploração da violência?
Na realidade, é a forma como a gente aborda. Eu não estou ali para poder alimentar o ódio e o crime, para expor vítimas. Eu estou ali para que o Poder Público fique alerta, para que a população entenda que, caso ocorra isso na sua vida, com alguém da sua rede ou alguém que está a sua volta, você saiba como agir. A forma como a gente aborda, em tom de educação, que informa e alerta para que a gente possa, de alguma forma, usar a voz online para ajudar a população.
Você veio do interior do Espírito Santo e tem história marcada por violências. Como toda a sua trajetória te levou ao lugar que você ocupa hoje?
Ela foi o motor, exatamente o motor. Eu cresci vendo o racismo, o abuso e crimes contra as mulheres. Eu olhava aquilo tudo e dizia: “eu vou ser advogada um dia e eu vou resolver isso tudo”, desde quando tinha 8 anos. Eu falo muito que eu estou no lugar que sempre foi um sonho meu. Eu não quero ser isso ou aquilo, eu já estou neste lugar, que é um lugar de ajudar aqueles que são, em regra, indivíduos. Mesmo sendo a grande massa que ocupa o Brasil, são ainda invisíveis. Fazer com que esses grupos excluídos tenham o mínimo e do que é probo, do que é realmente o Direito, é a minha missão de vida.
Quais são as suas maiores inspirações?
Eu falo que eu tenho duas grandes mulheres, que eu sou muito fã: a minha mãe, que sempre me orientou que a educação era o motor para eu fazer a revolução que eu dizia que eu ia realizar no mundo, e a Viola Davis, porque a história dela se parece muito com a minha. Olhar ela hoje é olhar a Fayda e dizer: “tudo veio para a gente dar errado, mas a gente virou não só a página, mas virou referência para que outras cheguem”. Alguém andou para que a gente hoje pudesse dizer que nós estamos aqui, igualmente para abrir outras portas.
Você veio do município de Cachoeiro de Itapemirim, num contexto mais afastado da grande metrópole. E mesmo lá, sofreu violência de gênero. Atualmente, vemos uma interiorização na violência na Bahia que também se reflete nos crimes de gênero contra mulheres. Quais as especificidades, na sua visão, desse crime nessas cidades afastadas da capital?
Eu acho que é ainda mais grave do que na metrópole, porque a metrópole tem acesso a todas as áreas de uma forma mais fácil, inclusive a educação. Quando vamos mais para dentro do estado, temos um judiciário que às vezes não opera, a delegacia que não recebe, a escola que não faz o trabalho que deve ser realizado. Do outro lado, vemos o Brasil colônia, que é quando o homem manda e a mulher obedece, o homem bate e ninguém liga, o homem mata e, aí sim, tomam providências para ver se prendem ele. Precisamos lembrar que o Brasil não pode ser resumido às metrópoles, que ele é grande e, por outros cantos, nós temos muitas vítimas sendo violentadas e mortas por ausência de amparo e acesso.
Nove a cada dez feminicídios na Bahia são cometidos pelo parceiro da vítima. A motivação normalmente é vingança porque a mulher já está em outro relacionamento ou simplesmente porque não quer mais o parceiro. O que está por trás da persistência de um crime como este em pleno século 21?
O problema é que ficamos muito presas a repressão. Dizem que é preciso aumentar as penas, mas a pena de um crime de homicídio qualificado por feminicídio chega até 30 anos. É uma pena alta. Então, o problema não é só a repressão. Precisamos falar de uma educação anti-misógina, porque o Brasil foi um país colonizado pela Europa com um modelo pronto, que tinha o homem como líder e a mulher como um adereço, que vinha ao mundo apenas para dar herdeiros. E assim nasce o Estado do Brasil. A violência contra a mulher já foi uma política de Estado, então, quando eu olho isso, vejo que hoje ainda colhe resquícios dessa herança histórica. A pena da repressão não vai resolver o problema de um homem achar que ele resolve o “quando” na relação: quando inicia e quando acaba. A ponto de achar que ele tem o poder sobre a vida e a morte dela. Precisamos falar de uma educação em todas as áreas, em casa, na escola e, mais ainda, no Poder Público. Porque o machismo vem de uma estrutura e está, inclusive, no Ministério Público, na delegacia e no judiciário. Precisamos lembrar que, quando eu falo de enfrentar crime contra as mulheres, isso não é um labor de um único ator, mas um dever cívico de todos nós.
Muitas mulheres têm dificuldade em denunciar seus agressores. O que você faz para encorajar essas mulheres?
O primeiro ponto é entender que elas não denunciam porque ficam com receio. E o segundo é que não tem uma rede em volta que entenda que ela não pode ser violentada. Eu sempre oriento as mulheres sobre todo esse histórico de violência contra as mulheres que o Brasil tem, e oriento que toda mulher tem o direito de ser amada. E amor não dói, não machuca e não mata. O que faz isso é abuso e, como tal, ele precisa ser olhado. Mas, é muito importante que toda a sua rede em volta, como pai, mãe, irmãos e amigos, entenda dessa mesma forma. É para essa rede que uma mulher vítima vai relatar primeiro o abuso sofrido e a resposta que essa rede dá ao relato é que vai ser o norte para que essa mulher rompa o ciclo.
*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro
[*] – Fonte: https://www.correio24horas.com.br/