Realizar tarefas administrativas no antigo Egito pode não parecer fisicamente exigente, mas novas pesquisas revelaram que ser um escriba deixava marcas nos esqueletos dos homens que ocupavam essas posições privilegiadas.
Os escribas eram homens de alto status com a capacidade de escrever e faziam parte de 1% da população que era alfabetizada, segundo os autores de um novo estudo publicado na quinta-feira (27) na revista Scientific Reports.
Mas as tarefas que os escribas realizavam eram repetitivas. Hoje, trabalhadores de escritório procuram cadeiras ergonômicas para passar muitas horas sentados à mesa. Os homens egípcios assumiam posições que se tornavam um risco ocupacional, conforme descobriram os autores do estudo.
Pesquisadores analisaram os restos mortais de 69 homens enterrados em uma necrópole em Abusir, Egito, entre 2700 a.C. e 2180 a.C. Trinta desses homens eram escribas, conforme marcado em seus túmulos, e seus esqueletos apresentavam mais mudanças degenerativas nas articulações em áreas específicas do corpo do que os outros restos mortais.
As descobertas abrem uma nova janela para a vida dos escribas no antigo Egito durante o terceiro milênio a.C.
Os restos mortais analisados no estudo pertenciam a homens que viveram na época áurea do antigo Egito durante o Reino Antigo, conhecida como a era dos construtores de pirâmides. É o que disse a coautora do estudo, Veronika Dulíková, egiptóloga do Instituto Tcheco de Egiptologia na Universidade Charles, em Praga.
Registros dessa época indicam aos pesquisadores que filhos de famílias de elite eram educados na corte real.
“Em uma idade muito jovem, na adolescência, eles se alistavam para servir em posições iniciais em vários escritórios administrativos para obter o treinamento necessário para avançar em suas carreiras”, disse Dulíková em um e-mail. “Eles então subiam na hierarquia dos escritórios que ocupavam.”
Na época, a alfabetização estava em sua infância, ela disse. “Não havia necessidade de uma população predominantemente agrícola ser capaz de ler e escrever.”
Os escribas no antigo Egito ocupavam posições não muito diferentes das posições governamentais na sociedade moderna.
“Essas pessoas pertenciam à elite da época e formavam a espinha dorsal da administração estatal”, disse Dulíková. “Pessoas alfabetizadas trabalhavam em importantes escritórios governamentais, como o tesouro (o atual Ministério das Finanças), o celeiro (o atual Ministério da Agricultura), o departamento de documentos reais, etc. Elas também desempenhavam um papel importante na coleta de impostos, nos cultos dos templos e nos complexos das pirâmides reais.”
Os papéis dos escribas eram cruciais na sociedade egípcia antiga, mas os registros que eles deixaram foram ainda mais valiosos para os pesquisadores.
“Os antigos egípcios mantinham registros cuidadosos de tudo, que depois armazenavam em arquivos”, disse Dulíková. “Quando encontramos um arquivo de papel hoje, é literalmente um tesouro. A partir desses registros, podemos aprender muito sobre o funcionamento dos complexos de templos, os serviços dos oficiais nos templos, a forma de seus salários, quais móveis ou utensílios estavam armazenados nos armazéns dos templos, etc.”
Os egípcios eram tão detalhistas que incluíam registros escritos diretamente nos túmulos para identificar as posições, carreiras e patentes dos homens enterrados lá, o que ajudou os pesquisadores a identificar os escribas administrativos.
A autora principal do estudo, Petra Brukner Havelková, antropóloga do Museu Nacional em Praga, especializa-se na identificação de marcadores esqueléticos induzidos por atividades há quase 20 anos.
Quando Havelková olhou para os restos descobertos em Abusir e viu exemplos de estresse nas colunas cervicais, ela percebeu que poderia haver uma conexão entre a degeneração esquelética e as ocupações dos homens.
Os primeiros esqueletos de pessoas do Reino Antigo foram descobertos em 1976 em Abusir, mas levou décadas para desenterrar mais.
Depois de não conseguir encontrar nenhuma pesquisa sobre doenças degenerativas nas articulações e ossos em antigos escribas, Havelková se uniu a Dulíková e outros colegas para conduzir um estudo próprio. Eles começaram a marcar as mudanças nos esqueletos dos escribas em 2009, mas levou mais uma década para encontrar restos suficientes para um estudo abrangente.
Durante a análise, os pesquisadores descobriram que os escribas tinham uma incidência maior de osteoartrite, uma doença onde os tecidos das articulações se desgastam ao longo do tempo.
Essas mudanças foram observadas nas articulações que conectam a mandíbula inferior ao crânio, na clavícula direita, na parte superior do osso do braço direito conectada ao ombro, na parte inferior da coxa, nos ossos do polegar direito e em toda a coluna.
Houve também mudanças notáveis, como uma parte achatada do osso na parte inferior do tornozelo direito e depressões em ambas as rótulas.
A maioria das mudanças esqueléticas podia ser atribuída às posições que os escribas assumiam enquanto trabalhavam, que foram registradas em decorações nas paredes dos túmulos e em estátuas. Os escribas ficavam de pé, ajoelhados ou sentados com as pernas cruzadas por longos períodos enquanto escreviam.
Se se sentavam com as pernas cruzadas, suas saias esticadas serviam como uma mesa, de acordo com os pesquisadores. Nessa posição, provavelmente se sentavam por horas, com a cabeça inclinada para frente, os braços sem apoio e as colunas vertebrais flexionadas.
Mas mudanças esqueléticas nos joelhos, quadris e tornozelos também apontam para uma posição de agachamento que muitos escribas preferiam. É provável que os escribas se sentassem com a perna esquerda ajoelhada ou cruzada, enquanto a perna direita era dobrada com o joelho apontando para cima.
Os escribas também mastigavam as extremidades dos juncos que usavam como instrumentos de escrita para criar pontas em forma de pincel, que passavam horas segurando em uma posição de pinça.
A mastigação explica por que suas mandíbulas estavam sobrecarregadas, enquanto longas horas de escrita provavelmente causaram as mudanças esqueléticas observadas nos polegares direitos, disseram os pesquisadores.
Os pesquisadores ficaram menos surpresos ao encontrar mudanças nos membros inferiores porque sentar-se com as pernas cruzadas e ajoelhadas era comum entre toda a população na época, mas não esperavam as mudanças na mandíbula.
“A maior surpresa foi a sobrecarga extrema das articulações da mandíbula nos escribas”, disse Havelková em um e-mail. “Isso era algo que nem pensamos no início, focamos principalmente no resto do esqueleto fora do crânio.”
A Dra. Sonia Zakrzewski, professora de bioarqueologia e bioantropologia na Universidade de Southampton, no Reino Unido, chamou a pesquisa de “inovadora”. Ela não participou do estudo.
“Ela sintetiza tanto o registro sobre o Egito (incluindo as evidências pictóricas e escultóricas) quanto as evidências bioarqueológicas de mudanças esqueléticas relacionadas à atividade para argumentar que as mudanças nos locais de fixação muscular e a localização das mudanças artríticas sugerem que os indivíduos afetados eram escribas”, disse Zakrzewski em um e-mail.
“Uma das questões-chave que temos na bioarqueologia é que não sabemos exatamente quanto, por quanto tempo e com que frequência as atividades devem ser realizadas para que ocorra a mudança esquelética, mas sabemos que nossos corpos se remodelam em resposta a tais tensões. Essa integração de outros aspectos da arqueologia com o registro esquelético é necessária na bioarqueologia, e este estudo é um ótimo exemplo desse tipo de abordagem.”
Agora, os pesquisadores querem colaborar com outros grupos para estudar e analisar escribas e outros indivíduos em diferentes cemitérios do antigo Egito, como o local de sepultamento em Saqqara.
“Junto com nossos ‘vizinhos’ em Saqqara, compartilhamos um objetivo comum, que é aprender o máximo possível sobre a vida e a morte das pessoas que viveram na época dos construtores de pirâmides”, disse Havelková.
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