Durante dez anos da minha infância, vivida integralmente numa pequena vila da Rua Chanés, no bairro de Moema, então um oásis bucólico da cidade de São Paulo, os meus dois lugares favoritos para passar o tempo ao voltar da escola, depois do campinho de futebol improvisado na nossa rua, eram o quintal e o minúsculo escritório/biblioteca da casa da minha avó materna, a pianista amadora e maga profissional Lygia Maria Rocha Leão Laporta.
Seguindo minha avó como um aprendiz de feiticeiro fiel, enquanto ela me apresentava as maravilhas escondidas no seu quintal, eu aprendi a ser cientista. Tudo que é realmente fundamental para seguir esta carreira – uma curiosidade infinita, saber identificar qual é a pergunta central a ser feita para a Natureza, manter a objetividade na análise dos dados coletados e, principalmente, nunca ter medo de acreditar nas respostas que a Natureza nos oferece, mesmo que ela contradiga os dogmas e tabus vigentes – eu aprendi nas aulas magistrais diárias que Dona Lygia ministrava com maestria sem igual. Como ela mesma dizia: “ser cientista é ser pago para ser criança por toda a vida”.
Já no escritório/biblioteca, ao som de toda sorte de óperas – Verdi e Puccini eram os seus compositores favoritos – emanadas de LPs acariciados mansamente pela agulha potente de uma vitrola de Hi-Fi de última geração, eu fui apresentado aos dois grandes amores de Dona Lygia: Dom Pedro I e um certo Alberto Santos-Dumont. Foi neste escritório, que Dona Lygia e seu assistente identificavam a localização de todos os pousos lunares das missões Apollo da NASA entre 1969 e 1972.Para tanto, nós usávamos um imenso mapa da Lua (ver foto) que havia sido publicado pela revista Manchete e que Dona Lygia pendurara numa das paredes do seu escritório. Foi neste mesmo mapa que, no centenário do nascimento de Santos-Dumont, em 1973, nós dois procuramos com uma lupa até achar uma cratera lunar de 8.5 quilômetros, próxima da região onde a Apollo 15 havia pousado, que acabara de ser batizada pela “International Astronomical Union” com o nome do ilustre brasileiro.
Muitos se referem a Santos-Dumont como o Pai da Aviação. Pessoalmente, eu acho este título pequeno e incompleto demais para este impávido gigante de 1,52m de altura e 50 quilos de peso. Para mim, Santos-Dumont foi um dos inventores da Ciência brasileira, título compartilhando, na minha opinião, com Oswaldo Cruz e Carlos Chagas. Uma ciência verdadeiramente tropical, que carrega no seu âmago, desde o seu parto, uma enorme dose de audácia, criatividade, humanismo, improvisação e, acima de tudo, uma resiliência e teimosia descomunais.
Como todo cientista brasileiro é capaz de confirmar em 2024, fazer ciência no Brasil não requer apenas talento e anos de estudo e dedicação, mas também uma enorme dose de paixão e obstinação cegas, uma vez que a ciência nunca fez parte das prioridades de um projeto nosso de nação. Algo que continua inexistente desde a tão improvável quanto inesperada chegada das naus de Cabral ao paraíso tupiniquim.
Recentemente, eu me dei conta que Santos-Dumont merece um outro título benemérito: o Pai dos Outubros Mágicos. Eu me explico. Curiosamente, dois dos feitos mais icónicos do nosso menino de Cabangu ocorreram no mês de outubro, sob a luz dos céus franceses. No primeiro destes, ocorrido no dia 19 de outubro de 1901, um sábado, Santos-Dumont decolou com seu dirigível 6, precisamente as 14:42 da tarde, para percorrer os 11 quilómetros do percurso de ida e volta que separava o seu ponto de partida, na pequena “commune” de Saint-Cloud – a oeste de Paris – até a Torre Eiffel.
Para total choque de uma multidão de pessoas e de passarinhos parisienses que não se deram conta que o seu monopólio dos céus estava prestes a desmoronar, Santos-Dumont não só contornou a bendita Torre Eiffel – cujo idealizador era seu amigo particular – como retornou ao ponto de partida, em menos de 30 minutos. Como resultado desta façanha, em menos de meia hora, Santos-Dumont literalmente anunciou silenciosamente a criação de um novo mundo; aquele em que sua invenção do voo controlado permitiria reduzir dramaticamente as distâncias entre os povos, uma vez que agora o tempo necessário para se cruzar o planeta diminuiria consideravelmente.
Na realidade, em menos de 100 anos, a ousadia de Santos-Dumont levaria o homem a pisar na Lua, precisamente no dia do seu aniversário de nascimento, em 20 de julho de 1969. Com o seu feito, Santos-Dumont recebeu o Prêmio Deutsch, idealizado pelo magnata francês Henri Deutsch de la Meurthe, no valor de cem mil francos, acrescidos de juros de 25 mil francos. Santos-Dumont prontamente doou 75 mil para que trabalhadores de Paris que haviam empenhado suas ferramentas de trabalho à justiça para pagar suas dívidas pudessem reavê-las prontamente. Os outros 50 mil foram para os mecânicos e operários que trabalhavam com ele, liderados por Albert Chapin, seu braço-direito.
Santos-Dumont voou para fazer história e cumprir a palavra empenhada –um ato quase que totalmente inexistente em toda a história nacional – não para ganhar dinheiro, um mantra quase que alienígena em 2024.
Num segundo dia de outubro (23), agora em 1906, no Campo de Bagatelle, Santos-Dumont realizou outro feito assombroso, testemunhado novamente por parisienses e passarinhos novamente atônitos, mas já acostumados com as ousadias daquele brasileiro que já era reconhecido mundialmente como a primeira grande celebridade do planeta. Prontamente, às 16 horas, vestido impecavelmente como era seu hábito desde seus primeiros testes aéreos, Santos-Dumont decolou no seu avião, batizado de 14-Bis, e voou por infindáveis 60 metros, decretando, de uma vez por todas, a abertura da temporada de conquista dos céus – e do espaço – pelo Homo [not so] sapiens, para assombro de todos os seres vivos voadores do planeta – e, porque não, do Cosmos!
A partir de então, nada mais seria como antes no quartel de Abrantes, como dizia Dona Lygia! Os entendedores entenderão!
Anos depois, quando confrontado por um jornalista francês mal-educado que questionou a relevância deste singelo voo inaugural do 14-Bis, argumentando que os irmãos Wright agora eram capazes de voar mais de 200 quilômetros no seu avião, como bom mineiro, Santos-Dumont refletiu por um momento, e respondeu ao repórter, num francês impecável de quem já detinha a Legião de Honra francesa, com a seguinte pérola:
– É meu filho, mas os primeiros 60 metros são sempre os mais difíceis, não é mesmo?
Como não se apaixonar por um homem que voava de terno e gravata e chapéu Panamá, pelos céus de Paris, conversando com seus novos compadres – sim, os mesmos passarinhos franceses, já curados do seu trauma e que agora seguiam seu novo “parça”, cantarolando pelos céus parisienses? Como não se render a uma verdadeira força da Natureza? Santos-Dumont jamais esqueceu suas raízes e a terra de onde ele obteve a inspiração para realizar o sonho de Ícaro e infinitos outras gerações de seres humanos que ansiaram, um dia, se libertar das garras da gravidade e singrar os céus deste resplandecente pedaço de rocha azul – Marte que me perdoe – que nos abriga e pacientemente nos tolera por milhões de anos, apesar das nossas constantes tentativas de reduzi-la à um monte de cinzas.
É numa tarde de outubro – torcendo desesperadamente para que a Enel não me deixe sem luz -, olhando para o mesmo mapa da Lua de Dona Lygia, que rodou o mundo comigo por 35 anos, e que retornou recentemente para repousar numa parede do meu escritório paulistano, que eu escrevo esta coluna em homenagem ao homem que me inspirou desde a infância. Alguém que como todos nós nasceu e cresceu sob a luz do Cruzeiro do Sul e um dia prometeu ir ao seu encontro, usando apenas a ingenuidade da sua mente analógica, da criatividade da sua inteligência orgânica, a força dos seus braços de carne e osso, e o seu amor tão incondicional, quanto insaciável, pela eterna aventura de desafiar o impossível, por toda uma vida.
Depois de Santos-Dumont, outubro nunca mais foi igual. Enquanto houver uma criança que sonhe em ver ou fazer algo que ninguém jamais viu ou fez, outubro sempre será um mês mágico!
[*] – Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/