Aparentemente, de repente, passamos a viver mais, muito mais. Morríamos antes dos 60 e agora aspiramos viver além dos 100! A questão a ser respondida é como será possível essa transformação.
Uma das características do ser humano e que está na raiz das propostas de Darwin, é a capacidade de se adaptar através de um complexo processo chamado de seleção natural.
O ambiente muda e produz riscos de dano e os organismos perecem e a forma de não perecerem é mudando. Existem mudanças que não são boas e promovem o desaparecimento daquele organismo – estas mudanças “erradas”, praticamente não são percebidas, são esquecidas. E existem as poucas mudanças que permitem a adaptação do organismo à nova situação ambiental. Todos os organismos vão assim se transformando e se readaptando ao novo ambiente. O dinamismo da vida é fantástico e de certa forma não perceptível.
A seleção natural tem em sua oposição a capacidade de adaptação. Mas somente são percebidas, identificadas, as adaptações que permitiram sobreviver. As que desapareceram são esquecidas. E assim parece que se vive em um ambiente de sucessos.
A seleção natural é verdade para todos os organismos e para tudo que de certa forma é chamado de vida. Mas se aplica totalmente ao homem. Com uma condição interessante e que tem motivado os entendedores da passagem do homem na terra a chamarem este tempo de antropoceno. A capacidade do homem destruir/construir/mudar o meio ambiente e seu próprio corpo tem se demonstrado quase sem fim. Parece que não existe limite.
Mas como é o processo que leva a vida a durar mais?
Quando morríamos de enfermidades infecciosas e/ou de violência, era tudo muito rápido e direto. Mas hoje se vive um tempo diferente – o saneamento básico, as melhores condições de vida, o melhor acesso a alimentos, acesso a abrigo e proteção das condições climáticas, mudaram as nossas relações com o meio ambiente e tornaram a vida mais longa. Mas ao construir essas novas relações, nos também mudamos o meio ambiente e criamos novas condições de agressão a vida. E passamos a ter que se relacionar com uma nova forma de adoecer e morrer.
A obesidade, a diabetes, a hipertensão, os canceres, a demência, são situações clinicas muito mais complexas e que permitem que nossa capacidade de adaptação nos leve a sobreviver e isso não significa viver melhor. As novas condições físicas provocadas pela convivência com doenças crônicas vão criar novas formas de adoecimento e sofrimento e morte. Ao ponto de criarmos uma nova área no processo de atenção a saúde chamada de medicina paliativa ou seja a de um processo de administrar o fim da vida de forma menos dolorida. E até passamos a exercer a eutanásia – dar fim a própria vida que tanto queremos aumentar.
A questão é complexa, mas suscita uma discussão importante – como a sociedade pode interferir de maneira a produzir mais e melhor vida? Não enderecei a questão ao indivíduo e sim à sociedade. E, portanto, falo de uma função do estado como gestor da sociedade. Como devem ser os sistemas de saúde nestes tempos do antropoceno?
A medicina 4.0, não é uma resposta, pois antes de respostas individuais temos que dar respostas coletivas. E essas respostas já tem um conjunto de informações bastante robustos – melhor alimentação, atividade física, consciência de atitudes de risco, autopercepção de bem-estar psíquico, uso consciente dos recursos da saúde, capacidade de relacionamento e convivência. São todas respostas bastante consensuais e extremamente complexas de serem induzidas.
O grande motor de todos esses comportamentos são o próprio individuo e todas as respostas têm uma intensa relação com a capacidade de se adaptar. Produzir mais e melhor vida, é o caminho para a longevidade.
De um lado, uma nova e complexa carga de doenças, de outro lado uma forma de se adaptar a novas formas de perder capacidades e, portanto, necessitar se adaptar. Mas há também um terceiro lado – conhecimentos médicos e novas possibilidades terapêuticas que devem ser colocadas à disposição da sociedade e dos indivíduos na busca da vida melhor e maior.
Para conseguir o encontro entre o novo ambiente e as adaptações que devemos produzir, temos que ter um sistema de intervenção na saúde capaz de escutar, disseminar conhecimentos e produzir uma força que leve os indivíduos a alterar seus comportamentos.
Isso é muito difícil!
Mas esse caminho é conhecido e já existe e se chama atenção primaria a saúde. É através dele que se poderá ter acesso aos cidadãos e levar informações que induzam um comportamento adequado para sobreviver à carga de doenças crônicas que estamos enfrentando e gerar um comportamento coletivo capaz de criar instrumentos para enfrentar as novas formas de relacionamento social que estamos construindo.
O conhecimento disponível de como enfrentar esses novos desafios sanitários e ambientais deve ser transformado em ações dos profissionais de saúde dentro do processo de atenção primaria a saúde. Dentre essas ações voltadas para o curar, devem ser destacadas as ações voltadas para o cuidar e dentre elas, talvez a mais importante seja o escutar!
O acesso à tecnologia tem sim um lugar nesse futuro, mas não antes do que pode ser propiciado pela atenção primaria a saúde que devera propiciar as transformações em nossas necessidades de adaptação para uma vida melhor.
E somente a partir de uma reestruturação das relações sociais isso será possível. E dentre essas transformações uma das mais importantes será a construção de uma sociedade menos desigual.
É um erro a ser evitado, achar que esse futuro desejável esteja ao alcance apenas das ações da saúde, exigira uma ação muito mais complexa – transformar o mundo para que o antropoceno não seja o final dos tempos.
[*] – Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/