Do ex-presidente Michel Temer (MDB) a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), passando pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), há defensores do semipresidencialismo como formato para a política brasileira.
Híbrido entre presidencialismo e parlamentarismo, o semipresidencialismo prevê a coexistência de um chefe de Estado – um presidente – e um chefe de governo – primeiro-ministro –, quem, apontado pelo presidente, atuaria dentro do Legislativo.
Especialista em Direito Público, João Victor Prasser dedicou sua dissertação de mestrado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) a pesquisar o modelo.
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O chefe de governo lidaria com as articulações com o Congresso enquanto ao presidente caberia uma representação institucional do Estado brasileiro, mantendo a este prerrogativas como dissolução do parlamento e demissão do primeiro-ministro, segundo ele. “O presidente só não vai estar envolvido no varejo da política”, afirma.
A dissertação, sob orientação do ministro do STF Luís Roberto Barroso, se tornou o livro: “Semipresidencialismo no Brasil: Experiências constitucionais comparadas e conformação”. Lançado pela editora Fórum no final de 2023, a obra conta com prefácio de Temer, apresentação de Barroso e posfácio de Bruno Dantas, presidente do Tribunal de Contas da União (TCU).
Confira, abaixo, a entrevista de João Victor Prasser à CNN:
CNN Brasil: De que forma o semipresidencialismo poderia contornar atritos entre Legislativo e Executivo?
João Victor Prasser: Temos um sistema na Constituição que já não mais corresponde à realidade.
Em tese, o presidente da República governaria controlando todo o Orçamento da União e contando com o apoio do Poder Legislativo para aprovar suas medidas, e controlando a distribuição de emendas. Hoje, porém, ele está muito limitado com as emendas impositivas, que agora são individuais, de bancada estadual, de comissão…
No semipresidencialismo, o primeiro elemento é que há a previsão de existência de um presidente eleito por voto direto – e isso é super importante que se diga –, que indica um primeiro-ministro. O segundo, é que o governo é exercido pelo primeiro-ministro e seu ministério.
Esse sistema traz uma conexão entre o governo – primeiro-ministro e seu gabinete – e o parlamento, com o governo dentro dele, como é nos sistemas parlamentaristas tradicionais, como o inglês e o alemão. Nesse caso, quem controla o Orçamento é o chefe de governo.
O semipresidencialismo já traria um desenho próximo, em alguma medida, de algo que a gente está vivendo na realidade.
Seria uma institucionalização do que estamos vivendo à margem, então?
Esse é o ponto central para mim. Analisar as disfuncionalidades do presidencialismo brasileiro gira em torno da palavra responsabilidade jurídica.
Faltam mecanismos de responsabilização para o chefe do Executivo, como vimos nos processos de impeachment (de Fernando Collor, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016). Sem entrar no mérito: há um relativo consenso de que eles foram embasados por perda de sustentabilidade política.
O semipresidencialismo traz o mecanismo adequado de responsabilização (do chefe de governo, com moção de censura, mantendo o presidente eleito por voto popular, chefe de Estado, no posto) e traz responsabilidade ao parlamentar individualizado.
Quando se forma uma coalizão de governo em um sistema parlamentarista ou semipresidencialista, aqueles parlamentares, e não apenas o primeiro-ministro, são todos responsáveis pela execução do Orçamento.
Evidentemente, como hoje temos um sistema proporcional de lista aberta, é difícil para um eleitor ter uma percepção de que um parlamentar tal é quem está destinando uma verba para algo, e de que ele é responsável por alguma coisa. A nossa cultura nos faz associar – e essa é a regra de jurídica – isso ao presidente da República, ao governador e ao prefeito.
Em sistemas parlamentaristas e semipresidencialistas, há uma percepção muito maior de cuidado com quem estamos elegendo para o Poder Legislativo
Na prática, o que aconteceria em um sistema semipresidencialista – e isso pode ser analisado positiva ou negativamente: todo o Orçamento estaria concentrado no parlamento. Poderia haver distribuição de emendas de bancada, individuais, de comissão, mas todo o Orçamento estaria concentrado no parlamento.
Como o chefe de governo já estaria dentro da estrutura do nosso parlamento, trabalharia para aprovar de uma forma mais colaborativa e mais ampla o direcionamento do Orçamento e das políticas públicas.
E para criar esse tipo de responsabilização, não dá para fazer isso sem uma reforma constitucional do sistema (do presidencialismo para o semipresidencialismo).
Levar o Orçamento para o Congresso no presidencialismo seria mais um processo de remendar a Constituição e as normas infralegais, dando mais um passo de enfraquecimento do presidencialismo e sem dar nomes aos bois
Para criar regras de responsabilização, a gente precisaria que o Orçamento estivesse lá (no parlamento). Veja o caso do piso da enfermagem, uma medida aprovada dentro do Congresso com alta impacto orçamentário: ela segue essa lógica.
Eles (parlamentares) vão enchendo coisa dentro do Orçamento sem saber o que vai ser, se vai poder executar – e, se não puder executar, quem vai ser responsabilizado é o governo, não o parlamentar. Em um modelo semipresidencialista, não seria assim: os parlamentares estariam todos envolvidos na responsabilização jurídica.
Na apresentação do seu livro, o ministro Luís Roberto Barroso aponta problemáticas nos sistemas eleitoral e partidário para dizer que eles também devem ser repensadas. A crise na organização política brasileira não poderia partir mais de questões nesses pontos, e não do nosso sistema presidencial?
Eu acho que isso se complementa. Pensando em um “Projeto Brasil”, a gente tem que pensar um pouco disso tudo ao mesmo tempo, e de forma concomitante.
O ex-presidente Michel Temer costuma dar o exemplo de que, quando ele mandava um projeto para a base do governo, ele não sabia nem se teria todos os votos da base, quem dirá às vezes nem do próprio partido dele. É uma grande disfuncionalidade, uma falta de lógica programática dentro dos partidos – e isso sem falar da pulverização partidária.
E como se daria a influência de um presidente sobre o governo em um modelo semipresidencial?
Embora o presidente não vá escolher um primeiro-ministro que não tenha sustentação política, o fato de o presidente ainda ser quem indica o nome é uma participação incisiva sobre os rumos do governo.
Ele vai ditar os rumos especialmente em momentos de concordância (quando o presidente e o primeiro-ministro são do mesmo grupo político). Mas, até na situação de coabitação (quando o presidente e o primeiro-ministro são de grupos políticos diferentes), quando ele não tem maioria, a própria escolha (do chefe de governo) o coloca na mesa de negociação.
Ou seja: o presidente só não vai estar envolvido no varejo da política, nas negociações para aprovar projetos, negociar vetos etc. E, ainda de forma complementar, há a dissolução do parlamento; é uma medida bastante excepcional, em tese não é algo que vai estar acontecendo várias vezes durante um mandato presidencial, mas a própria prerrogativa de assim proceder também cria um certo mecanismo de participação no governo.
É nos grandes rumos do governo, os grandes rumos da condução de uma política nacional, e não no varejo da política, que o presidente deve participar
As principais funções presidenciais em modelos semipresidencialistas estão mais concentrados na indicação de autoridades, funções relacionadas à matéria de defesa e de segurança nacional, agenda internacional, tratados, grandes negociações de políticas internacionais, etc.
E que aspectos servem de lição para que o semipresidencialismo brasileiro não se transforme no “hiperpresidencialismo” russo, que você descreve no livro?
Quem estuda o semipresidencialismo divide o modelo entre duas grandes categorias. E essa divisão considera um aspecto muito importante: o presidente pode ou não demitir livremente o primeiro-ministro?
Há um estudo muito denso feito por autores europeus que indica que o desempenho democrático é mais fraco em países onde é permitido o poder presidencial de demissão discricionária.
Esse exemplo gera uma recomendação muito forte na discussão brasileira: de que não se adote um modelo de demissão 100% discricionária por parte do presidente da República.
As constituições de modelos em que não há demissão discricionária estabelecem alguns gatilhos para ensejar situações de demissão do primeiro-ministro, como não aprovação de orçamento ou algumas questões da condução da política em si, mas não ao bel-prazer do presidente
Porque, se a lógica do sistema é justamente criar mecanismos de corresponsabilidade e de que o presidente influencie os grandes rumos do governo, mas não o varejo da política, se o presidente puder demitir todo dia o primeiro-ministro, ele está naturalmente se envolvendo no varejo da política. O caso da Rússia é emblemático nesse ponto.
A fragmentação que existe na Câmara não encontra paralelos em outros países semipresidencialistas. Isso não seria um problema para um semipresidencialismo no Brasil?
João Victor Prasser: Eu acredito que tem duas coisas que tem que ser ponderadas nesse caso. Primeiro: a gente já tem hoje uma cláusula de barreira em vigência, e há alguns números que dão perspectiva em relação a uma redução progressiva do número de partidos efetivamente representados.
Dos últimos anos para cá, sempre observamos alguma discussão de unir partidos — como foi o União Brasil (DEM com o PSL) — ou de federações partidárias – como a do PT (federado com o PCdoB e o PV).
Acho que estamos caminhando, embora não na velocidade que a gente poderia ou deveria, para uma diminuição no número de partidos. Já há uma diminuição na representação real, daqueles partidos que são verdadeiramente players dentro das negociações.
[*] – Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/